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26.7.06

A Terra


Na “terra” vestimos o que já não se usa, calçamos sapatos velhos, usamos chapéus e bonés ridículos, toda a gente se veste de trapos, comemos com talheres velhos, dormimos em lençóis desusados. Se vamos ao super mercado, trazemos o champô mais barato, o sabão que serve para o corpo e para a roupa velha, o detergente mais económico e o dizer é sempre assim: “leva-se este mais barato que para a terra serve muito bem".
A água canalizada é suja mas não faz mal, para água da terra é apenas um pouco turva.
O que não serve nas nossas casas, o que está roto, o que é velho, o tingido, o que já não se usa, guarda-se e leva-se para a “terra”, obrigatoriamente. Quem tem uma "terra" não deita nada fora. Qualquer guarda-chuva desmanchado, frigideira sem pega, frasco, saco, mesa ou cadeira, rádio, televisão, chinelo, pente, tábua, ferro, coisa sem utilidade nenhuma, leva-se para a “terra”. Na “terra” os restos de comida vão para os animais, os restos de água vão para a regueira.
Tudo se aproveita. Tudo presta. Até os velhotes e as velhotas na "terra" prestam para alguma coisa. Prestam para regar, para sachar uma horta, para levar o lixo, para levar o cão, para fazer queijos, para guardar ovelhas (os velhos na cidade realmente, não lhes vejo utilidade nenhuma).
Na “terra” os brinquedos do meu filho (tal como os brinquedos da minha infância, na “terra” da minha avó) eram todos velhos. Camionetas sem rodas, carrinhos descolorados, telefones inutilizados, peluches que dormiram connosco há mais de 30 anos e uma aranha que foi de uma prima afastada que já não quer aquilo para nada.
É engraçado que até a máquina de lavar roupa da “terra” não precisa ser boa como a da nossa casa, na cidade. A loiça não precisa de ser bem lavada, nem o chão. A televisão pode dar imagem aos chuviscos que é tudo normal na terra. Ninguém reclama cheiros, sujidades, buracos na roupa, cabelos eriçados, óculos fundo de garrafão com hastes presas com fita-cola, na terra só se reclamam as melgas e as moscas.
Para toda a vida não, mas para escapar da urbe e de termos que andar limpinhos, a cheirar a Carolina Herrera, vestidos à semelhança dos modelitos das revistas e das montras de roupa de marca, com as unhas arranjadas e o cabelo também. Para toda a vida não, mas para descansar da TV cabo, ir para a cama com um pijama qualquer sem problemas de parecer um trambolho, não olhar para a qualidade dos talheres, para a perna que falta ao banco, para os cortinados fora de moda, para o sofá rompido, para o espelho salpicado de não sei o quê. Para toda a vida não, mas os estereótipos e os clichés fadigam uma pessoa. Os cabelos pintados também. As gavetas com as peúgas e as cuecas como novas, a banheira a brilhar, o espelho também. Se há um dia que andamos por casa mal vestidos, nem vamos à varanda, na “terra” vamos a todo o lado assim, mal vestidos, despenteados, conscientes que não lavamos os pés, vamos ao café, ao supermercado, só não vamos ao cinema porque já fechou o cinema.
Para toda a vida não, mas para sermos nós próprios durante uns dias sim, devíamos ir à terra com alguma frequência. Lá, na “terra” só nos falta um bocadinho de nada para sermos absolutamente nós. Talvez embrulhar o nosso corpo na terra e ficar 15 dias seguidos sem tomar banho, não pintar a cara nem o cabelo para nos vermos como somos ao natural, andarmos com a roupa velha, enjeitada e larga e sentirmos que nos mexemos completamente à vontade, simplesmente. Enfim, todas as coisas que todos temos vontade de fazer, mas só na “terra” é que podemos efectivamente fazer (pelo menos sem que ninguém se espante e nos exclua logo do rebanho)

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