oreinabarriga

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este blogue tem Livro de Exclamações

19.4.08

História para o meu filho

A minha janela é um postigo. Ponho a cabeça fora dela e vejo todas as vielas tortuosas e escadarias romanas e visigóticas mais próximas. Todas as casinhas se abraçam umas às outras para resistirem à corrosão dos séculos. Este postigo, feito à medida da minha cabeça, é mesmo do tamanho da minha liberdade. Porque estou preso.
Fecharam-me aqui a sete chaves e só sairei quando a minha avó Fortunata se recuperar da queda que deu no pátio, ao regar os vasos de crisântemos. Acusaram-me de ter colocado bombinhas de Carnaval no xaile que lhe cobria os ombros das correntezas do pátio.
- Não fui eu!
- As invasões dos Franceses!
- Não fui eu !
- São os vândalos que nos vêm saquear!
- Não fui eu! Não fui eu!
Mas paguei as favas. Fui acabar nas profundezas do sótão onde as ratazanas andam atarefadas pelos cantos, onde um monte de batatas grelam sobre um manto de serapilheira.
O Chilrear dos passarinhos por cima das telhas emudece. As ratoeiras estalam. Anoitece no postigo.
Tenho medo. Tenho medo do escuro, da prisão, do próprio medo. Não vou chorar. Não quero com isso acordar as almas penadas que aqui se abrigam: o papão, a velha de trapos, as bruxas...
... Levantaram-me às pressas, enfiaram-me uma camisola de gola alta por mim a baixo e sentaram-me à mesa com maus modos, para logo de seguida me levantar com um bocado de carcaça a meio da goela.
Fui para a escola pela primeira vez.
O meu irmão João Escuro levava-me pela mão em passadas largas e saltava as poças de água e de lama com grande pinta. Eu, enterrava os sapatos (dois números acima do meu) nos charcos todos, sem falhar nenhum. Fiquei desde aí com a alcunha do "Salta Pocinho".
Passei o portão da escola. Bateu atrás de mim, verde e altivo, com um ferrolho tão maciço que tive dúvidas se algum dia me voltaria a dar passagem. Outra vez preso. Engoli instintivamente aquele pedaço de pão que não havia tido tempo de escorregar para o estômago.
Fiquei mal disposto.
A carteira que me coube era perto da janela. Aquilo sim, era uma janela. Graaaande. Dava para ver o recreio, os pinheiros, o céu azulinho, mas eu só era capaz de pensar que não tinha feito chichi antes de sair de casa. Aquele pensamento manteve-se na minha cabeça até soar a campainha. Saltei dali para fora a correr direitinho à casa de banho, mas tropecei entretanto num vaso, colocado estratégicamente no meu percurso, e fiquei mais de 10 minutos a tentar convencer uma senhora de bata que tinha sido sem querer. Sem querer também fiz chichi nas calças e mandaram-me de castigo para casa, depois de ter vomitado no vaso que ficou de pé...
... Comecei a enrolar os atacadores dos sapatos.
- Deixa vir o teu pai que logo lhe conto que foste expulso da escola!
Comecei a ouvir os passos da minha sentença. Assim que entrou em casa (o meu pai) deu um pontapé na camioneta de lata que eu me tinha esquecido em cima da carpete.
- Fô ** sse! O que é que esta mé*** está a fazer aqui no chão, ca*****? Mesmo tendo a camioneta acertado no lato da minha peúga, levei dois dias preso no sótão de castigo.
Não preguei olho a noite toda. Desta vez, chorei.
De manhãzinha, a minha prima Luísa veio visitar-me. Trouxe-me dois pãezinhos-de-leite e uma caneca de leite com chocolate quentinho. Garantiu-me que não existem papões, nem velhas de trapos nem bruxas. Só anjos-da-guarda.
Não acreditei nem em uma palavra do que ela disse. Eu bem sei que eles me rondaram a noite toda e que a velha de trapos até me puxou as pernas. Mas disse-lhe que sim e mudei de assunto:
- O teu bebé também está preso? Dentro da tua barriga?
- Sim (sorriu), mas em breve vai nascer.
- Deve ser bom estar preso no quentinho, mas, como é que ele ficou ali preso?
(A prima Luísa ria muito, era muito risonha, lá isso era)
- O primo Filipe deu-me uma semente e eu guardei-a. A semente cresceu e em breve nascerá um bebé!
Ao fim da tarde fui liberto. Depois do silêncio religioso da hora do jantar, fui acabar de comer uma laranja para os degraus da soleira da porta. A Mariana veio à janela. Corei. As minhas pernas eram varas verdes. Fui ter com ela. Tossi. Apontei para ela aquilo que trazia na palma da minha mão:
- Queres?
- Não. Laranjas à noite matam.
- isto não é uma laranja, é uma semente. Toma.
- Para que é que eu quero isto?!
- Guarda-a.
Arreliada, atirou fora a semente, que foi parar para meu desespero, no quintal da D. Juliana.
Tentei pular o muro, mas bati com o nariz mesmo na última fileira de tijolos. Estive quase. Fui dar a volta e saltei pelo portão. Agachei-me e procurei. No escuro era difícil... achar uma semente tão pequenina. Quando finalmente a vislumbrei, entre dois talos de couve, saltou sobre mim o Golias, o cãozarrão da D. Juliana. Desta vez fiquei preso e bem preso, aos dentes do Golias. Fui salvo pela D. Juliana, que me sacudiu todo, deu-me duas ou três advertências, mas prometeu que não fazia queixa ao meu pai. Nem era preciso, assim que me cruzei com ele, todo esfarrapado, enlameado, com um sorriso pouco à vontade, nem esperei que o seu sopro de raiva lhe levantasse a popa de cabelo sobre a testa, fui direitinho para o sótão sem que ele me mandasse.
Pus-me ao postigo, apavorado com a ideia de nascer um bebé dentro da terra.
Todas as manhãs antes de ir para a escola, espreitava para o quintal da D. Juliana. O pior de tudo, era que mal o bebé nascesse, vinha o Golias e Zás!
Adoeci gravemente. Ninguém entendeu do que eu padecia, nem a razão da minha falta de apetite. Só queria ficar no sótão e às escuras. Era tudo um segredo: O meu amor pela Mariana, a semente, o bebé que ia nascer na terra...
... Dois anos mais tarde:
A D. Juliana morreu. O meu pai foi preso. O meu irmão João Escuro manda cá em casa como gente grande. A minha mãe cala-se bem caladinha e eu, sou o melhor aluno da classe (a desenho).
No lugar do bebé, nasceu uma laranjeira. O sótão é agora a sala de costura da prima Luísa e o bebé chama-se Mariana (fui eu que lhe pus o nome).
Passo horas a embalar a Mariana e a contar-lhe histórias do velho sótão que ela não conheceu.


Maria João Viana
Diário de Notícias, Terça-feira, 12 de Março de 1996



42 comentários:

Becas disse...

Fuô** sse!
C' um C**
Tu já em 96 escrevias assim?
E eu a ler Ana M.ª Magalhães e Isabel Alçada, era mesmo estúpido pá

MiudaCute disse...

Olhó Becas!
Por onde o João Ayres?
Adorei a tua história, finalmente começas a publicar literatura juvenil.

Beijinhos para o Miguel

Becas disse...

Olá miúda, Se tivesses ficado assim tão feliz de me ver não perguntavas pelo outro, mas eu sou um tipo que releva e disseram-me, eu não sei, disseram-me, que a prima Ema como é do Brasil e o João Ayres é de L.A., eles ainda estão a tentar acertar o fuso horário, mas como estão a tentar pela hora da Austrália demora + tempo, é que no Brasil são agora 5 da tarde, em L.A. é meio-dia e na Austrália devem ser 3 da manhã, conta que ele só venha aqui lá para 10 da noite hora de Portugal (e com efeitos visiveis de jet leg, por isso também não é bom estabelecer conversa quando é assim) Tchau miudas
(só o outro é que é giro não? E diz umas piadas...)

Carmina Burana disse...

Escangalhei-me a rir contigo Becas, mas queres 1 conselho? Mete-te com ele, mete...

João Ayres disse...

Vi agora no jornal um anuncio que diz assim:
"Olá, sou o Becas,
Acabei a minha relação com a Belinha porque ela tinha uma boca enorme, de orelha a orelha, sinto-me muito só e gostava de encontrar uma miuda com boquinha de chupa ovo (preferencialmente) para futuro relacionamento sério. A minha foto está em todas as revistas da Rua Sésamo.
Respostas para a Sésamo Muppets Show, ou pelo telemóvel tal tal."

Está bom o anuncio, vou beber café. Abraço

Becas disse...

Isto tem mesmo que ser resolvido lá fora! Vá, lá para fora se tens coragem,
olha-me este, anda a acertar o fuso com 1 Gema, dorme com 1 Miss Antártida mas gosta é de ouvir Carmina Burana. Estou lá fora.

João Ayres disse...

Lá fora digo-te que horas são no meu relógio. Certas.

MiudaCute disse...

O problema do João Ayres é ter mau colesterol (logo não deve papar gemas) e gostar de ouvir só música clássica (A carmina Burana é a preferida).
Este cm é para a Gema.

Carmina Burana disse...

O coment é para a Gema e quem se lixa sou eu, ou vocês pensam que a Miss Antártida não lê este blogue? E não vem aqui ao pasquim da esquina ler os comentários?
Vem ela e vem o meu marido caneco, Até TU MIUDA CUTE??
Não tem desenhos para colorir a menina não?
Com a sorte que eu tenho, o meu amigo Paulo Pereira, um dia destes ainda vai descobrir/ aderir aos comentários deste blogue e depois é o fim da Carmina Burana (é a morte do artista) e depois sempre quero ver para que Post's é que vocês vão exclamar.

Becas disse...

Carmina, faz-me um Post.

Carmina Burana disse...

Não me apetece Becas, estou sem inspiração para escrever.
Tu não estavas lá fora?

Becas disse...

Pá, estava, estava lá fora com o João Ayres, ele estava a mostrar-me o relógio dele, entretanto veio o monstro das bolachas e comeu-o.
É o que faz andar na rua vestido de Bolacha Chip Mix.

Carmina Burana disse...

Ó que destravados, vocês...

Becas disse...

Gema, faz-me um Post.

Gema disse...

ó querido eu estou tão ocupada, só vim aqui por ter um pressentimento que estavam a falar de mim e para ler o Post novo, maravilhoso... De qualquer maneira a fazer, fazia ao João Ayres, ele inspira-me e já saiu da casca à mais tempo.
Desculpa Bequinhas, faço-te um beicinho, pode ser?

Becas disse...

Já estou de beicinho.

Gema disse...

Re: à miudacute
Como se diz lá no Brasil, eu não dei sorte mesmo, estava chovendo sopa e eu de garfo na mão.
O colesterol é uma coisa tramada. O meu pseudónimo ainda vai arruinar a minha vida.

Becas disse...

Muda para "Danacol".
De desprezada passas a levar 1 por dia.

Gema disse...

Ó minha querida esta deve ter sido geral!

MiudaCute disse...

Foi gargalhada geral mesmo, até o meu irmão se riu (coisa rara).

Becas disse...

Obrigado minha gente.
Agora para dentro, vou fazer os trabalhos de casa porque afinal a protagonista aqui é a carmina, se não fosse ela e o seu talento, onde é que a gente estava hã?
Ao papelão, ah, pois era.
(és melhor que a Rita Ferro, e que a Margarida e que o Miguel Sousa Tavares, eu que o diga hã, que não leio nenhum, só te leio a ti, és a maior, ao pé de ti eles só arranham, vai chegar o teu dia Carmina, se calhar o problema é o pseudónimo, mas aqui o Becas aranja-te um para teres sucesso lá fora.

Becas disse...

Carmina Espanca,
Carmina Agustina Bessa Luiz
Carmina Rebelo Pinto,
Carmina Salgado,
ou até mesmo,
Carmina Allende,
Carmina Marguerite Yourcenar,
melhor ainda, diz que és a actual do Rui Costa, ou que fizes-te um Post ao Mourinho, é na certa, amanhã já estás a escrever para o Jornal Espesso e não tarda nada está nos Top's das livrarias, vai por mim, vão por mim, o pseudónimo é muito importante, não vêem por exemplo o meu: Becas, com este pseudónimo só me fazem beicinhos e festinhas na cabeça (na cabeça? No cabelo queria eu dizer)

Gema disse...

Ó pá uma pessoa não consegue largar isto... não consegue ir-se embora daqui.
Isto à mesa do café é assim ou piora? Melhorar parece-me impossivel. Beijinhos a tds
Tenho mesmo que ir senão fico aqui o tempo todo.

Carla Boavida disse...

Vim meter-me aqui na molhada desta gente gira e bem disposta.
Tomei a liberdade de imprimir o teu texto "História para o meu filho", vou lê-lo aos meus.
Beijinhos para si, para o Ricardo e para o Miguel, que não foi inspiração para este texto apesar de lhe ter sido dedicado, mas é de outros e para a vida toda.

Carmina Burana disse...

Fez a Dr.ª muito bem em imprimir o texto. Leia, leia, para castigo.
Beijinhos

Carla Boavida disse...

:) :)
Leve-se a sério. É meio caminho andado, a seguir a mudar de pseudónimo como muito bem diz o seu amigo da Rua Sésamo, é meio caminho andado. Bj

Carmina Burana disse...

O pior é que se eu me levo a sério, não sai nenhum texto. Não sai nada.
A medicina tem explicação para isto?

Carla Boavida disse...

Tem sim, quando o doente não se quer tratar não vale a pena o médico insistir. Bj

Carmina Burana disse...

Eu sei bem quem escolho para meus heróis. E porquê.
O seu comentário foi rapidamente inteligente, não era de esperar outra coisa. Bj

Carla Boavida disse...

O problema é deste espaço que é contagiante, entra-se aqui e vamos na onda.
Ainda bem, e assim terminei a minha pausa. Foi mesmo bom, obrigada por isto. Tem efeito paracetamol. Beijinhos

Carmina Burana disse...

Bom trabalho minha querida. Venha sempre.

João Ayres disse...

Para Gema: Não mudes para nome de iogurte, eu não mereço.

Becas disse...

Também não podes beber leitinho, é?
Não me digas que és alérgico.

João Ayres disse...

A propósito do anuncio do jornal, lembram-se?
A miss piggie foi a única que respondeu ao anuncio, como ela tem nariz de ficha, o Becas está a tentar apanhar um choque eléctrico.

Becas disse...

Eh pá, já percebi, tu gostas de danacol, o que tu não consegues é beber 1 por dia!
(esta até vais levar por e-mail)

João Ayres disse...

Pois não. Ela está no yahoo, eu no gmail, o oceano Atlântico no meio dificulta amigo.

(quando vi um becas acabou de entrar na minha cx postal até me assustei, há pessoas mais aborrecidas que o trabalho)

Becas disse...

Estou cheio de peninha, trabalho, trabalho e mais trabalho, os artistas trabalham muito, escrevem... Depois a miss Antártida também está do outro lado do oceano, mas mais a cima, no .org, tenho pena de ti pá, tu deves dar 1 quê? Trimestral não?

João Ayres disse...

Para aí.
E molho-me todo.

Becas disse...

Vais a nado, és parvo.

João Ayres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Ayres disse...

Sou nadador olímpico.
E gosto de musica clássica.

Carmina Burana disse...

vou contarvos um SEGREDO:

Sei de um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

Não é meu, é de Miguel Torga, meus são os amigos que tenho que fazem o pino a voar.