Ficou apenas um sobretudo, preto, entre os restantes cabides nus, a oscilar num quadrado oco, pendurado como um enforcado, de mangas inertes, os bolsos vazios, a lapela degolada a emoldurar um quadro que já lá não está.
Lembro-me vagamente da tua relação com um vestido Azul. Azul? Sim, azul, azul cor de petróleo. Lembro-me de te ver pendurado no bengaleiro do teatro, do café da livraria Antunes, do hall da casa da Ema, éramos felizes, somos felizes, só não sabia que um dia iria abrir os braços, com os puxadores de ambas as portas do guarda-fatos e só existires tu, entre os restantes cabides nus, a oscilar num quadrado oco.
E se pensas que não via o nosso álbum de fotos, via. Sempre que tu não estavas eu via e o sobretudo está naquele retrato quando ganhaste o teu primeiro prémio literário e está no retrato onde o nosso filho andou pela primeira vez de carrocel, não se vê a tua cara e só se vê um bocado do sobretudo, mas dá para ver que é o sobretudo que eu nunca te disse, mas assenta-te como uma luva.
Afundo os dedos nos bolsos do casaco, não encontro nada que te incrimine. Não sei dizer se alguma vez trouxe o sobretudo algo que te incriminasse, um bilhetinho, um convite, um poema, as pessoas falam, os amigos comentam, há a internet, mas sabes como são os outros, gostam muito de falar da vida alheia, não dou ouvidos. Éramos felizes, somos felizes. Ás vezes encontrava um talão da caixa do supermercado com o nome da operadora e a hora em que tinhas lá estado e isso chegava para mim.
Fecho as portas do guarda-fatos e os braços. Estás atrasada. É o trânsito. Deve ser o trânsito.
Pego no guarda-chuva e vou para a rua esperar-te. Oito, oito e meia, nove, dez, é melhor voltar para casa, ligar a televisão no noticiário, deve ter havido algum acidente, deves ter o telemóvel desligado, as pessoas passam por mim e falam, dizem que ele não tira os olhos de ti, o homem que eu achava que não olhava para ti duas vezes, disseram-me que ele não tira os olhos de ti, não ligo, onze, onze e meia, entro em casa com a ultima chuva nos olhos, volto a remexer nos talheres, substituo os guardanapos, nunca devíamos ter vindo morar para aqui, tem muito trânsito e comemos sempre a comida fria. Abro os braços com as portas do guarda-fatos e espanto-me: todos os cabides estão vazios... Todos.
Éramos felizes, somos felizes, quando chegares para jantar (é o trânsito) seremos felizes porque já não uso roupa interior de outra cor, é tudo preto. Gostas de preto e tenho slips de cor preta. A roupa interior de homem preta, faz milagres.
Todos os cabides estão vazios. - Velhos? Os trapos? Sorrio vagamente.
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