oreinabarriga

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23.9.15

A última vez que chorei

Desci a rua com as mãos enterradas nos bolsos. Feira da ladra, desmontada, é quase meio-dia. Descem a meu lado os nómadas que transportam o que ficou por vender, o que resta do resto que já não lhes valia de nada.
Deixei-me ultrapassar. Os meninos do bairro instauraram um vozeiral por aquelas bandas. Brincavam à volta da lata do lixo, até que a derrubaram e puseram-se a olhar para ela com uma expressão de cumplicidade.
Fiz sinal de continência ao sol, que sol! Nem parece Dezembro!
Os gatos das ruelas vizinhas aproximaram-se da lata do lixo e ali ficaram, magriços, a focinhar o almoço fora de horas.
Mais à frente, quase à beira da estrada, uma menina de fatinho cor de laranja, saltava à corda, enquanto outra sentada à sombra, no degrau do 61, contava os pulos da primeira.
Por cima, vigiava-as uma criatura de faces enrugadas, qual uma folha de papel amarrotada. Tinha nos olhos, pontinhos de saudosismo. A enquadra-la, a arquitectura pictórica da janelinha de tabuinhas, construção semelhante a uma pálpebra sonolenta e querer fechar-se.
Dobrei-me na calçada para apertar os sapatos. Atravessei a rua, já lobrigava ao longe, o Arnaldo, o dono do 14, a encher copos de vinho com gestos de langor (é um bom homem, o taberneiro).
Escrevi mais umas linhas sobre “A última vez que chorei”. De certo, este meu silêncio são lágrimas. Tenho a boca a saber-me a sal.
À tardinha fui desentorpecer as pernas para o jardim.
Sentei-me no banco mesmo por baixo do jacarandá que
sobrevoa a minha cabeça no lilás das suas flores, as folhas.
Entardeceu.
Anoiteceu.
O sem abrigo olhava para mim à espera que eu me pusesse a
milhas e finalmente pudesse esticar o corpo magriço nas tábuas, embrulhado na manta que trazia enrolada debaixo do braço em farrapos.
Sorria, com os lábios da cor do jacarandá, à mostra os dentes
amarelados.

- Esta noite vamos dormir os dois. - E pus os meus rascunhos a jeito de almofada.
- Que seja. - Disse ele a desembrulhar a manta aos quadrados.

Acordei dentro dela, fedorenta e tão esburacada como a terra
pelas raízes do jacarandá.
Levei as mãos aos quadris e levantei-me com o cuidado de não
partir nada. Já de pé olhei para as folhas da minha árvore genealógica a salpicar o céu em tons de lilás. No seu murmúrio causado pelo vento, soprou-me aos ouvidos:

- A paz é o desassossego (Deve ser por isso que correm as pessoas). Não chove.
Porque correm as pessoas? Porque correm mesmo quando não
chove?
Alguém as espera?
Fui aos correios telefonar.
Marquei os números todos, repeti, não dava sinal.
Liguei para as informações e as funcionárias do serviço,
mandaram-me virar o numero ao contrário, achar-lhe o mínimo múltiplo comum, trinta por uma linha.
Desisti.
No segundo vão de escadas a caminho da minha porta, encostei-
me à parede que desta vez se abriu como um raio.
Desembaciei os olhos, enxuguei a cara, fumei. Continuei a subir.
Entrei.
Não fui sentar-me no cadeirão vermelho desbotado. Alguém teve a mesma ideia que eu.


amadurecidos, transpirados, a boca bem desenhada, fechada, e de repente, a rasgar-se num sorriso sem fim.

Abri os braços e voei. Mordi-lhe a boca, lasciva, e ardi.
E foi a ultima vez que chorei.