oreinabarriga

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este blogue tem Livro de Exclamações

5.5.08

078902630RH+

O António Lobo Antunes às vezes magoa-me. Bem sei que é sem querer, não lhe quero mal por isso, antes pelo contrário, invejo-lhe todos os livros por não serem meus, mas às vezes magoa-me. Sem intenção, é claro, mas magoa-me. Ele faz por nos descontrair, para se descontrair a ele próprio das suas más lembranças e ainda bem que o faz a escrever livros sobre o assunto, e para nos fazer companhia e para que lhe façamos companhia na viagem de ida e volta aos lugares de onde nunca conseguimos partir, verdadeiramente, que nunca deixámos e portanto, pouco mais do que aquilo, é o que conhecemos. Pego sempre num livro do António L. Antunes, numa crónica, sei que vou gostar, sei que vou até ao fim, sem parar, pelo menos antes ia, antes de ter filho, ainda assim, pelo sim e pelo não, pego num livro do António Lobo Antunes não antes da meia-noite, para quando não quiser parar, não ter que parar por razões maternais, conjugais, domésticas... Sei que me vou rir. Sei que vou ficar melhor. (Se não estou a ler António Lobo Antunes agora é porque já li tudo o que tenho cá em casa, sobrou 1/4 do "Eu hei-de amar uma pedra" mas não me ensina a amar nem tão pouco a deixar de ser pedra) sei que vai passar o azedume, a birra, o pressentimento, o amuo com a vida. Se elas lá coubessem (as crónicas), guardava-as no armário que tenho embutido no espelho da casa de banho e onde guardo os comprimidos para o enjoo e para a s cefaleias. Mas às vezes magoa. Eu sei que não é por mal que ele fala do quartel da PIDE. Dos morteiros 120 do MPLA. “O alferes que durante o ataque saiu da caserna com um colchão sobre a cabeça, a borrar-se literalmente de medo”... “A gente a escolher os nossos próprios caixões na arrecadação”. Eu sei que não é por mal que ele diz que não é capaz de reler aquilo, eu acredito que quando é publicado nem abra a revista na página do seu próprio artigo. “O Lourenço, maqueiro, com as próprias tripas nas mãos. A filha que me nasceu durante este horror, a minha filha.” Eu sei que é a ele que elas lhe mordem (as lembranças), eu devia era virar a página, mas não viro a página. Se viro a página, está lá a foto-reportagem de Sebastião Salgado e os meninos infectados pela poliomielite, sem pernas e mesmo assim a jogarem à bola! (ainda ontem não joguei à bola porque achava que me doía a barriga) . O Sebastião Salgado às vezes magoa-me. Bem sei que não faz por mal, que culpa tem um fotógrafo de haverem rostos descarnados a passarem fome, cravados de moscas, a barriga numa bola, a passarem-lhe à frente da objectiva da máquina e de tanta fome já nem pedem de comer, e são eles que fazem disparar a máquina e nos alvejam a nós, sentados numa cadeira que roda e vai para trás, como aquela criança moribunda de carapinha loura, que era a parte mais branca da fotografia (está a olhar para mim, para mim? Sim, para mim) com uma expressão de dor que já não é dor, de fome que já não é fome, de tristeza que já não é tristeza, de criança que nunca o foi e a expressão é mais indecifrável que o sorriso mais célebre da história da Arte. É mais chocante que qualquer atentado terrorista, qualquer rebentamento de uma bomba, qualquer torre de Nova Iorque a ser atingida por um dirigível possuído, às vezes até tenho a impressão que está a sorrir vagamente para a objectiva, para a objectiva? Sim, para a objectiva, por momentos pareceu-me que fosse para mim. É o desespero ou a resignação ou aquilo que eu não sei descrever. Nunca mais me sai da cabeça aquela fotografia, aquela criança já saiu deste mundo da maneira mais indigna, por esta altura, mas da minha cabeça não sairá nunca aquele rosto que cabia na palma da minha mão, aquele olhar infinito capaz de atravessar o oceano todo, a minha terra, e chegar aqui como se fosse meu filho e olhar para mim, todo seco, todo engelhado, entubado, cheio de fome a olhar para o Sebastião Salgado e para mim que o abri, naquela página que nunca virei (não pediu sequer um prato de comida).
Volto à crónica do António Lobo Antunes. "Ninda. Chiúme. Cessa. Mussuma." São terras de África que eu não dizer no mapa. “Éramos tão miseráveis, tão desprotegidos, sentíamos-nos tão sós que quase se tinha inveja dos amputados.” “De súbito isto regressa como um vómito”. Ele (António Lobo Antunes) a ver passar uma criatura de fato de treino rosa fluorescente e roxo fluorescente, de cordão d’ oiro ao pescoço a fumar a ponta de um cigarro, num domingo qualquer, e de repente regressa-lhe aquilo como um vómito e a mim de súbito magoa-me, não estava à espera. “No interior de mim não passo de um prisioneiro sem pernas, amarrado ao guarda lamas do rebenta minas a gritar o tempo todo.” No interior de mim não passo de uma reles escritorazeca que lê e relê tudo aquilo que escreve por não ser capaz de súbito, como um vómito, estar-me nas tintas para o que escrevo. “A literatura que se foda, desculpem, a escrita que se foda, redesculpem.” Isto não é escrita light (agora sou eu que digo). Isto não é um romance cor de rosa. Isto não tem um final feliz. Isto não se escreve do pé para a mão, isto não se volta a ler (que se foda). Se tem erros vai com erros, se tem palavrões vai mesmo assim. Se forem capazes de virar a página, virem a página, se forem capazes de passar a reportagem do Sebastião Salgado sem verter uma única lágrima, ainda bem para vocês. Sei que o António Lobo Antunes não faz isto por mal. Quando não chorar mais sem lágrimas a não ser quando a fotografia me sobe à cabeça e sinto o vómito, do menino que já não chora por todas as razões, vou virar a página e hoje é domingo e vou à procura da criatura que anda no centro Comercial de fato de treino cor de rosa choque e roxo choque , de cachucho no dedo, beata dentro da palma da mão, ténis da feira, vou registar aquele momento que ainda me há-de dar aso a escrever uma crónica divertida, só para vocês.
“Agora, prometo, vou lavar as mãos e torno a escrever coisas como deve ser.”
Agora, prometo, vou lavar as mãos e torno a escrever coisas como deve ser.

P.S. O António Lobo Antunes saberá como ninguém, decifrar o título deste texto.



Inspirado na crónica de António Lobo Antunes, publicada na Revista Visão em 20 de Junho de 2002 e na Foto-Reportagem de Sebastião Salgado na mesma edição.

11 comentários:

João Ayres disse...

São insónias?

Carmina Burana disse...

Hum, hum.

João Ayres disse...

Sabes que eu leio o teu blogue do último Post que li até ao último que tu escreves-te, inverto a ordem, leio de baixo para cima (nada de metáforas) não duvido da tua capacidade de adaptação, quando não queres (ou não consegues) andar em frente olhas para cima (o céu é o limite).
Não preciso dizer o quanto gostei de ler pois não?

Carmina Burana disse...

Sim.

Carmina Burana disse...

"A mulher é minha, o filho é meu, o romance é comigo, o que estes estapafurdios comentam no teu blogue a mim não me interessa!"
O certo é que quanto mais tempo escrevo, menos tempo estou na cama.
A Rainha é que tem razão: "Vocês escritores(as) devem ser uns gandas chatos não devem?"

João Ayres disse...

Doida.
"O amor nasce de quase nada e morre de quase tudo"
Queres matar o amor?

Carmina Burana disse...

Não, mas de tanto eu escrever o amor teve um ataque cardíaco. Ou foi antes de eu começar a escrever?
Já nem sei...

Carmina Burana disse...

A Isabel não vai deixar. Ela quer só o papá. Ainda se fosse uma escritora de fábulas...

João Ayres disse...

Ela nem vai dar por isso, a gente sabe que tu só vens em sonhos.

Carmina Burana disse...

Vamos lá a isso então, que amanhã é dia de trabalho.

Carmina Burana disse...

Desculpa Fiori.
a) não estimules o .g
b) não incentives ao "beijo contra-relógio"
c) não mandes comentários pelo .org
d) manda pelo gmail
e) Ricardo dá cá + 5 e depois foges com a mão? Ai, ai...
f) tenta lá comentar agora ó espertinha! :)