oreinabarriga

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7.5.08

Estranho reconhecimento

Estou p’ aqui à espera, se ao menos eu soubesse roer a tampa à caneta, se ao menos a caneta tivesse tampa. E nada. Não acontece nada. Ás vezes sufoca-me. Como um nó cego na garganta. Estrangula-me este nó que não se esvai, nem em lágrimas, nem em sangue, nem em saliva nem em suor, nem em tinta de esferográfica. Fico a olhar para o quadrado branco, luminoso, à espera, como o António Lobo Antunes olha para o bloco de notas (será que ele rói a tampa da caneta?), a agonizar, o nó não se desata (se eu ao menos tivesse o telefone do António Lobo Antunes). Ás vezes vou no carro e isto sufoca-me, às vezes vou na rua (Olhe, por favor, tem uma caneta que me empreste?), provocam em mim um certo embaraço. Tusso. O pirralho vai para baixo, mas desatar-se é que não há maneira.
Vejo-me acometida desta estupidez diária que é passear-me no centro comercial com a garganta entupida. Um aglomerado de gente agitada e eu sem ser capaz de mergulhar no aglomerado e deixar-me ir naquele entra e sai, naquele vai e vem, em vez de me dar para escrever por tudo e por nada e depois não sai nada, nada de nada (olhe, por favor, tem uma caneta que me empreste?) nada de jeito, nada que se aproveite, nada de interesse (deixe estar obrigada, já não vele a pena), coisa nenhuma, hoje está um belo dia e os belos dias não me inspiram mesmo nada e para além do mais tenho que regressar ao escritório, na Rua dos Douradores, fazer o inventário do armazém das louças. Se eu tivesse ao menos o telefone do António... ou vontade de “fazer” as unhas, entrar na loja de turismo só para meter conversa com a menina, só para chatear a menina (na hora de almoço), só para a ver enfiar o taparwere com frango e massa guisada debaixo da secretária, garfo e tudo, passar a língua pelos dentes, "Diga, se faz favor?", sim, porque o ordenado de primeira escriturária só me chega para comprar o passe, o L 123. Olho para toda aquela gente sã, na sua lida embriagada... E só depois reparo, não será o aglomerado a que chamo de gente sã, gente que afinal, agoniza como eu? Olho melhor, todas as testas estão franzidas (num vai e vem, num entra e sai). Presto atenção, ouço vozes:
- "Agora lembro-me lá qual era o jogo que o puto queria, ou seria o castelo do Harry Potter?"
- "E o sacana do CD que não me cabe dentro do bolso das calças! Eu que tive tanto trabalho a descartar o chip."
- "O quê? A senhora está a dizer-me que isto não tem desconto? Como pode ser?! Estava lá marcado, eu vi, para além do mais, se não tivesse desconto, a senhora acha que eu ia levar uma tesoura de podar?!"
- "Não! Tira a mão daí, já! Não comes mais conguitos!"
- "Ó filha, para que é isso do Dystron dentro do carrinho?"
- "Tu sabes que eu na higiene íntima gosto de me desinfectar muito bem, deixa lá estar isso!"
- "Mas ó querida, isso sabe a amoníaco..."
Só então percebo que não estou só. Isto que vejo é apenas outro tipo de agonia.
Já não me vasculho, remexo, viro a cabeça do avesso, já não penso mais, já não me importa não ter o que escrever. Já não espero. Ainda bem que não tenho o telefone do António Lobo Antunes (para ele, obviamente). Dirijo-me para a saída e vem uma senhora direita a mim, já me reconheceu de certo, vem de papelinho em punho, vai pedir-me um autógrafo. Até que enfim alguém repara que me arrasto por aqui. A velhota reconheceu-me mesmo, lá vem ela toda sorridente, de papelinho verde com as arestas ainda do que devia ter pertencido a um bloco de notas com argolas, estendido recto ao meu nariz, a arreganhar os lábios, os dentes esborratados de escarlate:
- "A menina é que é aquela escritora muito conhecida não é? Aquela que escreveu o Como emagrecer em três tempos e O como emagrecer sem deixar de comer gorduras e farináceos, eu gosto muito da menina, mas o autógrafo é para a minha nora, ela tem todos os seus livros! É uma sua admiradora incontestável!
Engoli em seco. Assinei o papelinho. Sorri (como se tivesse os dentes esborratados de escarlate). Dei-lhe duas repenicadas beijocas. Encontrei a saída do Centro Comercial. Ainda olhei para trás, a senhora lá ia ao fundo do corredor a empurrar o carrinho das compras em direcção ao mundo agonizante dos que se agrupam em Centros Comercias quando não têm nada para comprar nem para escrever. Levava o papelinho verde com a minha dedicatória debaixo do braço, dentro do porta moedas. Eu ainda lhe disse:
- "Eu escrevo é num Blogue, chama-se O rei na barriga."
Mas ela com certeza, já não me ouviu.

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