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29.2.08

Estou exausta

Reza o código deontológico que se deve rezar a morte. E que se deve chorá-la com exaustão. Ter presente que feliz ou infelizmente quem jaz já não volta e chorar em ambos os casos. O que jaz por baixo desta terra que apanho em punhados e deixo escorrer entre os dedos, nunca mais volta e as lágrimas saltam-me dos olhos cheios de água. As campas devem levar flores, reza a páginas tantas o dito código.
Não vim com flores, mas vim exausta. Percorri dezenas de corredores de epitáfios, ficaram não sei quanto tempo a alternar na minha memória um sem conta de rostos amarelos e castanho avermelhados. Os mortos não deviam levar campas, as campas não devias levar flores, as fotos não tinham que perder a cor original, estes cedros não deviam ser os muros, devia ser proibido chorar a morte. Quem te matou devia estar atrás do código de barras por ter feito do teu corpo crivo em braille.
Não vim com flores, mas vim exausta. Do tribunal aqui foram duas horas e meia de código de estrada. Sobrevivemos a engarrafamentos e acidentes, sobrevivemos à solidão, à infidelidade, à procura de uma farmácia, a haver dias antes e depois das noites, às cuspidelas, aos centenários, às alcunhas, ao fim das coisas. Sobrevivemos codificados. Uns são codificados de trabalhadores outros de drogados, ou infectados, tontos, com a etiqueta do vestido para dentro ou para fora conforme a marca. Não convém apaixonarmo-nos pelas árvores, ou pela rua, ou pelo candeeiro antigo da rua, ou pelas pedras da calçada, convém que seja por um preferencial código genético sexualmente oposto. Sempre é mais fácil excluir que decifrar um determinado código. Vou ligar para o SOS prevenção do suicídio para perguntar se têm uma lista de voluntários para no dia tal, às tantas horas, na capela da nossa Freguesia se possam apresentar e chorar-me. O medo que tenho de morrer, é por ainda não ter acumulado a cifra conveniente de pessoas que me chorem.
Vim sem flores mas com umas poucas coisas que de certo já não te vão emocionar, mas o que é a gente morrer? Se ainda não foi esse código devidamente decifrado? Pelo sim pelo não, trouxe um caderno e um lápis mal afiado, como gostas, gostavas, nunca resistiremos à vontade de escrever pois não?
Trouxe poesia da melhor espécie e algumas gravações do João Villaret, espero que já tenhas tido o privilégio de o cumprimentar aí no fim da terra e que antes, tenhas sacudido bem as mãos. Não trouxe cigarros nem as tuas ceroulas porque se bem me lembro dizias que quando morresses as deixavas de vestir e de fumar. Nunca soube se te agrada receber flores. De qualquer modo, vim sem flores. Mas vim exausta, da sessão do tribunal e do código penal, sabes quando anos de amnistia levou o gajo que deu cabo de ti? Mais do que os de condenação! É verdade.
Vi que tinha revirado toda a terra que apanhava em punhados e deixava escorrer entre os dedos. Parece que está morna... Saltam-me as lágrimas dos olhos cheios de água. Olhei de soslaio para o retrato do senhor defunto do lado. Depositei em cima da campa dele umas folhas do caderno. Talvez lhe apeteça mandar uma carta, escrever poesia, refazer o testamento (está com ar disso na foto amarela. Amarela? Sim, Castanha avermelhada), escrever ele mesmo o seu próprio epitáfio: "Hipocondríaco, pois. E agora? Já acreditam?"
Talvez deva ir às flores. Todas as campas devem levar flores.
Todas as mortes se devem chorar pois não podemos enganar-nos no código. Nem sempre temos três tentativas até acertar, ou não fosses tu ter entrado naquele dia, com a password errada.
Maria João Viana In DN Jovem Tema Códigos 2 de Julho de 2002