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2.7.05

Diário do nascimento de uma mãe II



“As malditas contracções”

As contracções do útero vieram durante a noite e não me deixaram pregar olho. Eram fortes, com intervalos de 5 minutos. Mas suportáveis. Durante o dia, já não consegui almoçar sentada, ainda tentei ver um filme com o pai, mas já não tinha posição para estar, só me aguentava de gatas! Arranjei forças para tomar banho, mas às 5 da tarde senti que estava na hora, as águas não rebentavam, mas as contracções estavam a tornar-se infernais. O pai, com o seu braço direito engessado mesmo assim me conduziu ao Hospital. Fui no branco de trás do carro, deitada, a contorcer-me, concentrada em respirar segundo os ensinamentos da professora Lola. (Respirei por aquele método durante tantas horas, que ainda hoje, em casa, sem me doer nada, dou por mim a respirar assim!)

“O internamento”

Chegada às urgências fui atendida por uma enfermeira enorme que me fez de propósito um questionário do tamanho dela, para ver se eu me aguentava. O que eu não aguentei foi o toque que ela me fez! Aplica-se a expressão: trepar pelas paredes! A sorte é que foi um toque relâmpago. Fiquei logo internada.
Como a professora Lola me tinha explicado, seguiu-se um suplício de tarefas. A enfermeira grande era tal e qual um sargento da tropa e eu tal e qual um soldadinho a cumprir ordens: agora vista a bata, agora ponha o penso, agora aperte o penso com as coxas, agora calce os chinelos, agora vá lá fora entregar as roupas ao seu marido e dizer-lhe que fica cá, enfim, se eu não soubesse que era para meu bem que nos mandam executar estas lidas sem qualquer ajuda, sem qualquer piedade, estando nós à beira do descontrole por conta das contracções, tinha ficado pior que estragada! Mas a missão do ‘sargento’ é justamente provocar a dilatação ao ‘soldadinho’. Depois de entregar os meus pertences ao Ricardo, veio uma médica que me mandou fazer um bebé-gel (antigo clister) e lavar-me num poliban. Aí é que eu fiquei de rastos mas já com 4 dedos de dilatação.
Na salinha própria para o efeito, a parteira furou-me o braço direito todo a fim de me enfiar a agulha do soro. À 7ª tentativa falhada lá se dignou então a pegar na garrafinha e no respectivo suporte e enfiar-me a agulha no outro braço. Para recordação, fiquei com o braço direito todo negro!

“Rebentar as águas”

Depois do soro posto, ligaram-me ao CTG. A monitorização é feita através de sensores presos com uma cinta que é colocada na barriga da mãe. O aparelho (tipo sismógrafo) liberta então um papelinho onde são registadas as contracções e a frequência cardíaca do bebé. É uma técnica indolor mas desconfortável porque temos que permanecer deitadas e quietas mesmo quando as contracções vêm com toda a força!
Depois do CTG rebentaram-me as águas com um instrumento fino e comprido (lanceta) que tem uma ponta perfurante num dos extremos. Por esta altura já não conseguia sequer falar. As contracções não davam tréguas. Lembro-me de registar o momento do rebentamento das águas como algo único. Libertei uma quantidade exagerada de água quente e muito leve, como a espuma, capaz de encher um alguidar. O rebentamento das águas é um processo que não se controla. A água depressa seca nas coxas e a partir daí as contracções passam a acontecer ininterruptamente e com uma enorme violência. Da única vez que consegui falar, pedi a analgesia epidural. Consegui pedir por favor, mas mesmo assim, a médica ‘foi ali e já venho’. Quando voltou, num sadismo tamanho, não trouxe a epidural e ainda quis fazer-me o toque. Lembrei-me outra vez da Professora Lola: “Se lhe quiserem fazer o toque quando estiver com contracções, não deixe porque é extremamente doloroso.” E eu não deixei, contorci-me toda e a médica não foi capaz. A Professora Lola foi em muitos momentos do meu parto a minha salvação.
Um dia tenho que lhe dizer isto com imensa gratidão.

“Monitorização interna”

Através de um eléctrodo, colocado na cabeça do bebé é captada a frequência cardíaca enquanto um cateter controla as contracções uterinas. Os fios que vinham da cabeça do meu filho e ligavam ao CTG estavam presos a meio caminho com uma cinta à minha coxa esquerda. Este método implica que a bolsa de águas já se tenha rompido, só assim é possível tocar directamente na cabeça do bebé.
De cada vez que me contorcia com dores e como sabia que a monitorização interna pode provocar lesões na cabeça do bebé, (mesmo que desapareçam em poucos dias) sentia que estava a magoar o meu filho! A fazer-lhe mal. Mas nada podia fazer. Estávamos sós…

“O período de expulsão”

Esta foi a parte traumática do meu parto. Foi aqui que eu me descontrolei, parei de respirar como a professora Lola me ensinou e comecei a ouvir o meu grito, cada vez mais alto e forte.
Tudo se passou até agora em menos de 3 horas. Pareceram-me 3 longos anos de purgatório!
O relógio marcava 19 e 30, entre as contracções senti uma enorme vontade de fazer força, uma força descomunal. Era o meu filho a abrir caminho para poder nascer. Coloquei a mão direita entre as pernas e senti o redondo da cabecinha dele, logo, instintivamente, o meu corpo recolheu a cabecinha, como se o quisesse expulsar e engolir ao mesmo tempo. Chamei pela Senhora enfermeira, pela Senhora Doutora, ninguém veio, o meu filho a rasgar-me, a empurrar, cheguei a sentir a cabeça dele rodar e sangue (provavelmente) a escorrer para o balde do lixo. O relógio oscilava entre a parede e um mundo à parte, eu a ter um filho sem qualquer amparo. Entrei mesmo em pânico. Para além do meu grito, nunca soube até então o que era o pânico.

“O nascimento do Miguel”

Fora de tempo apareceu a parteira, que também soltou um grito. Veio a médica num instante, mandaram chamar o Ricardo às pressas e às pressas também, foi como me levaram para uma sala de partos vazia. Apesar de estar aos prantos, agarrada ao ferro que suportava a garrafinha do soro, vi entrar o Ricardo e foi como se tivesse aparecido um anjo. Já não me senti tão só. Se alguma coisa corresse mal ele estaria ali para testemunhar ao menos.
Lembro-me de me ter queixado de não ter levado a epidural, não agentava mais aquela dor aguda, lembro-me de ter perguntado porque é que me estavam a fazer sofrer tanto?
A analgesia epidural faz parte do Plano Nacional de Luta contra dor!
Era um direito meu que não me foi concedido. E eu sei que pedi a analgesia na altura certa, quando as contracções tinham um intervalo que permitia que me fosse dada a injecção e fosse lá deixado o cateter para outros reforços, mas foi negligenciado o meu pedido. Esta é a verdade.

“ A ajuda do pai”

O Ricardo não se limitou a assistir ao parto como tantos outros pais. Eu não imaginei que o meu parto fosse assim, urgente, tão doloroso, ele também não. Na sala de espera, junto com os meus pais, de certo contava passar a noite toda em branco e depois poder participar no nascimento do filho sem assistir aos meus gritos de dor. A parteira e a restante equipa ainda estavam por se vestir e calçar as luvas e colocar a jeito os utensílios quando ele entrou na sala de partos. Foi o Ricardo quem me acomodou na maca. Foi ele que me tranquilizou com palavras e até me defendeu da rudeza da situação. A verdade é que entrou na sala já equipado e se portou como se fosse membro da equipa médica.
Se eu fui uma heroína, o Ricardo foi um pai herói!

“O Meu filho”

Foi tudo o que consegui dizer quando me colocaram o Miguel no peito.
Senti uma vaga ternura, o resto era um alívio extremo, extremo oposto da dor.
O meu filho estava tão limpinho, era tão pequenino e quente. O cheiro dele (sangue e cabelos) entranhou-se e permaneceu nas minhas mãos e no meu peito durante muito tempo, indissolúvel.


“A expulsão da placenta”

Uma nova contracção, forte mas indolor, faz o corpo expelir a placenta, com a ajuda da parteira que puxa pelo cordão umbilical. Saiu inteira. É semelhante a uma alforreca. (Se saísse fragmentada era necessário efectuar uma completa limpeza porque restos de placenta provocam graves infecções)

"Os pontos"

Levei anestesia local, dada com uma agulha que o Ricardo diz assemelhar-se a um anzol da pesca e fui então cozida. Como a parteira decidiu praticar os seus dotes de bordadeira, passou o efeito da anestesia e senti os últimos pontos, umas valentes picadas, mas quem passou pela dor que eu passei, muito embora não deseje sofrer mais, porque não merece, limita-se a soltar um breve e fraquinho “ai”.

"A Adrenalina do parto"

Tremores incontroláveis apoderaram-se do meu corpo todo como uma descarga, ou como se estivesse há horas mergulhada num buraco cheio de água gelada.

"A sala de recobro"

Avisaram-me que tinha que ficar pelo menos hora e meia de absoluto repouso. E levaram o meu filho para fazer testes. Perguntei quando o voltaria a ver. Fiquei amargamente sem resposta. Só o cheiro dele nas minhas mãos, no decote da bata verde ficou comigo.
Passado um bocado de tempo veio uma enfermeira mal disposta que vazou o meu filho para cima de mim como se fosse um saco de lixo a cair no contentor. O meu bebézinho chorava descontrolado, tremia o queixinho, os punhos estavam cerrados e foi assim até se aperceber que finalmente a estúpida enfermeira o tinha despachado para os braços da mãe.
Vi-a ir-se embora, rangendo entre dentes que o meu filho tinha feito um berreiro no berçário, que tinha mau feitio, que estava farta e a dar graças a Deus ter terminado ali o seu turno. Eu desatei a chorar. O meu filho tinha sido mal tratado, despachado para o meu colo como quem de raiva, pontapeia um cão e eu indefesa. É dos indefesos como o meu filho, um recém-nascido e como eu, ali, depositada naquele estado, que se valem pessoas daquela espécie.
O meu filho não sabia mamar como a maior parte das crianças que logo por instinto, procuram o mamilo da mãe. Eu em contrapartida não sabia dar de mamar. À tamanha tristeza que sentia, juntou-se a frustração.
Para piorar o episódio da minha estadia na sala de recobro, a enfermeira mal disposta não acabou o turno sem se despedir de nós. Como pretendia ir mais leve para casa onde com certeza não terá à sua disposição tanta gente indefesa como ali, decidiu criticar-me por não saber dar de mamar ao meu filho, depois, visivelmente mais aliviada, virou costas para a saída e tratou de avisar que tive o meu filho porque quis.
Felizmente, nunca mais durante a minha estadia no Hospital voltei a encontrar aquela ou outra criatura da mesma fornada. E tomara que da próxima vez que o meu filho indefeso, seja maltratado, eu esteja em condições de me transformar num raio.

"O corredor"

Finalmente vieram buscar-me a mim e ao meu filho. Fizeram-me a palpação da barriga, mediram-me a tensão arterial, viram os meus pontos e deram ordens para me transferirem para o piso da obstetrícia. Antes, tivemos a visita de uma enfermeira espanhola, que me deu miminhos por eu estar a chorar.
Na passagem pelo corredor vi mais uma vez o Ricardo e vi os meus pais. Pude beijá-los e sossegá-los. A minha mãe estava com umas olheiras maternais, como se tivesse passado a noite toda acordada a rezar a todos os Santos por mim. Foram só umas horas. Sofri muito mas a “minha hora” foi curta, “foi uma hora pequenina” como se costuma dizer. O meu pai agarrou-me na mão e depois no braço todo negro do soro. Os olhos dele pousaram no meu filho transpirados como a terra molhada, emocionados. Um dia escrevi que o meu pai ia olhar para o meu filho como olhou para mim pela primeira vez. Estava certa.
Despedi-me. Queria que o Ricardo ficasse connosco, mas não pode ficar. A maca entrou no elevador, eu com o meu filho aconchegado ao braço que estava bom, sem poder olhar para ele, só via lâmpadas e tetos. O elevador parou 1 ou 2 dois pisos acima, não sei. E parece que cheguei ao céu…

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