Na “terra” vestimos o que já não se usa, calçamos sapatos velhos, usamos chapéus e bonés ridículos, toda a gente se veste de trapos, comemos com talheres velhos, dormimos em lençóis desusados. Se vamos ao super mercado, trazemos o champô mais barato, o sabão que serve para o corpo e para a roupa velha, o detergente mais económico e o dizer é sempre assim: “leva-se este mais barato que para a terra serve muito bem".
A água canalizada é suja mas não faz mal, para água da terra é apenas um pouco turva.
O que não serve nas nossas casas, o que está roto, o que é velho, o tingido, o que já não se usa, guarda-se e leva-se para a “terra”, obrigatoriamente. Quem tem uma "terra" não deita nada fora. Qualquer guarda-chuva desmanchado, frigideira sem pega, frasco, saco, mesa ou cadeira, rádio, televisão, chinelo, pente, tábua, ferro, coisa sem utilidade nenhuma, leva-se para a “terra”. Na “terra” os restos de comida vão para os animais, os restos de água vão para a regueira.
Tudo se aproveita. Tudo presta. Até os velhotes e as velhotas na "terra" prestam para alguma coisa. Prestam para regar, para sachar uma horta, para levar o lixo, para levar o cão, para fazer queijos, para guardar ovelhas (os velhos na cidade realmente, não lhes vejo utilidade nenhuma).
É engraçado que até a máquina de lavar roupa da “terra” não precisa ser boa como a da nossa casa, na cidade. A loiça não precisa de ser bem lavada, nem o chão. A televisão pode dar imagem aos chuviscos que é tudo normal na terra. Ninguém reclama cheiros, sujidades, buracos na roupa, cabelos eriçados, óculos fundo de garrafão com hastes presas com fita-cola, na terra só se reclamam as melgas e as moscas.
Para toda a vida não, mas para escapar da urbe e de termos que andar limpinhos, a cheirar a Carolina Herrera, vestidos à semelhança dos modelitos das revistas e das montras de roupa de marca, com as unhas arranjadas e o cabelo também. Para toda a vida não, mas para descansar da TV cabo, ir para a cama com um pijama qualquer sem problemas de parecer um trambolho, não olhar para a qualidade dos talheres, para a perna que falta ao banco, para os cortinados fora de moda, para o sofá rompido, para o espelho salpicado de não sei o quê. Para toda a vida não, mas os estereótipos e os clichés fadigam uma pessoa. Os cabelos pintados também. As gavetas com as peúgas e as cuecas como novas, a banheira a brilhar, o espelho também. Se há um dia que andamos por casa mal vestidos, nem vamos à varanda, na “terra” vamos a todo o lado assim, mal vestidos, despenteados, conscientes que não lavamos os pés, vamos ao café, ao supermercado, só não vamos ao cinema porque já fechou o cinema.
Para toda a vida não, mas para sermos nós próprios durante uns dias sim, devíamos ir à terra com alguma frequência. Lá, na “terra” só nos falta um bocadinho de nada para sermos absolutamente nós. Talvez embrulhar o nosso corpo na terra e ficar 15 dias seguidos sem tomar banho, não pintar a cara nem o cabelo para nos vermos como somos ao natural, andarmos com a roupa velha, enjeitada e larga e sentirmos que nos mexemos completamente à vontade, simplesmente. Enfim, todas as coisas que todos temos vontade de fazer, mas só na “terra” é que podemos efectivamente fazer (pelo menos sem que ninguém se espante e nos exclua logo do rebanho)