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29.2.08

Desassossego


Eu que não volto a ler um livro que gostei. Eu que não volto a lê-lo porque dele guardei as melhores memórias e não se deve remexer nas memórias (nem nos ex namorados nem nada)para que permaneçam no mínimo limpas. A segunda vez não é como a primeira. Não podemos esperar dela que produza o mesmo efeito, que dilate o mesmo encanto. A última vez que me pus a ler um livro que no passado tinha gostado imenso, acabei a achar o livro particularmente estúpido e a pensar por que raio gostei eu de ter lido aquilo e ter guardado tão fantasiosas memórias e claro, o resultado foi que o autor era um bom autor, o livro era um bom livro, a boa lembrança era uma boa lembrança e foi-se tudo por água a baixo, as personagens ficaram as últimas sobre as primeiras, tomaram-lhes o lugar, enfim, não foi bonito. Aconteceu-me depois com o Casablanca, andei anos a dizer Ai é o meu filme preferido, adorei, emocionei-me, um dia passou na tv e resolvi vê-lo outra vez, sei dizer que para além de me dar vontade de rir (que é precisamente o contrário de dar vontade de chorar) ao segundo intervalo mudei de canal e nunca mais o Casablanca foi o filme da minha vida. Agora é o Zorba. E será o Zorba porque é coisa que eu jamais voltarei a repetir.
Não volto a ver um filme ou uma peça que me impressionou ó voltas. Não é a mesma coisa, repetir não é a mesma coisa, a fome já não é a mesma inevitavelmente, ou já não é surpresa e tantas vezes destrói essa boa lembrança. Aquela que nunca devia ter sido remexida, é que de certa forma acontece uma sobreposição, já para não acontecer coisa pior.
Eu que não volto a ler o mesmo livro, que não volto a ver o mesmo filme, que não volto a segunda vez para assistir à mesma peça, estou prestes a fazê-lo. Há imensas forças que me fazem um apelo. A força do Teatro, das peças boas, dos bons actores, dos autores Portugueses. A Comuna repôs O Desassossego. Para meu desassossego. Justamente. Sou capaz de passar horas infinitas a ouvir o Carlos Paulo, a recitar, a falar, a representar, apetece-me sempre repetir. Passaram-se sete anos da primeira vez. Sete anos é um 'ror de tempo. E se as imagens ficam sobrepostas? E o deslumbramento se perca? A a voz não se entranhe e o Desassossego não me parta nos mil bocados que tive de juntar para voltar a ser eu? E se a lembrança ficar velha, velha não, antiquada?
Lembro-me da personagem a Criança a chamar pela mãe, perdidamente. Da cama. Do quarto solitário ou apenas um quarto da alma. Uma criança que perdeu os pais, tremendamente perturbada.
A peça começa com o desalento de um guarda-livros, um escriturário, (evocação de Pessoa num fiel registo auto biográfico) a mim trouxe-me à lembrança o poema de Ramos Rosa, o funcionário cansado, que tanto gosto. O espelho, um homem que vestia metade homem-metade-mulher e reflectia (os espelhos reflectem) sobre as relações humanas. O mendigo, o palestrante. O palestrante tem uma banca e convence as mulheres a serem fiéis com o corpo mas infiéis com o pensamento e eu que estava sentada mesmo na primeira fila, a mim o palestrante convenceu-me de imediato.
Depois de ver esta peça percebi porque é que nunca gostei do silêncio, das coisas quietas. As coisas quietas metem medo. São a ausência de vida ou de recordações. A paz que sempre queremos alcançar ou que julgamos sentir, não é mais do que desassossego.
Saí sem voz, com um embaraço na garganta. Com os olhos a transpirar como o corpo transpira de nervoso, de estafa. Feita em mil bocados, aqueles que depois tive que ordenar e juntar para funcionarem as pernas e os braços, assim como estes mecanismos todos cá dentro, de relógio suíço, só quando isto se desmonta tudo é que se dá o devido valor ao trabalho de por tudo outra vez no sítio e no fim ficar tudo a funcionar como dantes.
Decepcionada não fico. Está lá um grande actor em cima de um grande palco e o Fernando Pessoa também lá está, que os homens grandes nunca acabam (citação de Almada Negreiros).

mas que imagens se sobreporão ao primeiro desassossego? Se eu for mesmo capaz de quebrar o preceito?







"Do Desassossego" Autor: Fernando Pessoa sob o heterónimo de Bernardo Soares Encenador: João Mota Interpretação: Carlos Paulo (em seis personagens) e Hugo Franco Comuna Teatro de Pesquisa Praça de Espanha De 1 de Janeiro a 8 de Março de 2008 De 4ª a Sábado às 21:30 - Domingo às 17h 10 Euros ou 5Euros (4as e 5as) Telefone: 21 722 17 70 http://www.comunateatropesquisa.pt/