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21.5.07

Um pardal... Que silêncio

Quando o meu pai era pequeno, ia para o campo espantar pardais munido de um caldeiro e de um graveto para o efeito. Depois batia com o graveto no caldeiro…
Não consigo imaginar o meu pai a afugentar passarinhos e por causa disso, não consigo contar o resto da história... talvez um dia, quando os pardais se calarem...

25 de Fevereiro de 2005 (ainda o nosso menino não era nascido)

O meu pai sempre foi apardalado. Às vezes chamamos pelo meu pai e ele parece que não nos ouve.
Onde está o meu pai quando chamamos por ele?
O graveto a bater no caldeiro deve fazer tanto barulho, deve ser por isso que ele não nos ouve. Esperamos. Ele há-de voltar do campo. Esperamos. Ele há-de voltar da infância e vir para o pé de nós e voltar a ouvir-nos.
Às vezes falo com o meu pai e ele parece que não me ouve. Onde está o meu pai quando falo com ele e ele parece que não me ouve?
São homens que estão a bater à porta da taberna do Valente, e o meu pai não me ouve quando os bidões (atrás da porta) abanam como se a terra tremesse a ponto de o meu pai não me ouvir quando falo com ele. Eu espero. O meu pai (o meu pai estará com 14 anos por esta altura em que não me ouve), há-de abrir-lhes a porta e eles calam-se. E o meu pai volta para o pé de mim para me escutar.
Um dia enfiaram o meu pai dentro de um navio (com infância e tudo, tudo para dentro de um navio, pardais, graveto, caldeiros, uma camioneta de lata, Sr. Valente e tudo, chamava-se Moçambique o navio) e mandaram o navio para África, para Angola mais precisamente. Com o meu pai e tudo, com a infância e tudo. Alguma Pátria falará mais alto do que eu, lá em África e o pai não me consegue ouvir.
Espero.
Eu quando é assim, espero.
Ele há-de embarcar de regresso no navio paquete Vera Cruz quando forem vinte e cinco de Outubro de mil novecentos e sessenta e três e desembarcar em Lisboa a quatro de Novembro, eu própria vou buscar o meu pai, nesse dia, quatro de Novembro.
A estúpida Pátria cala-se finalmente assim que o meu pai põe os pés em terra (eu própria vou buscar o meu pai, não sei se ele no meio daquela confusão se deu alguma vez conta de que estou lá, à espera dele…) A Pátria cala-se finalmente assim que o meu pai põe os pés em terra e ele já me pode ouvir, mas é preciso esperar.
Antes disso, na tropa, deram ao meu pai um livrinho, ao meu pai que sempre foi apardalado deram um livrinho. Um bom condutor do exército: “Traz sempre a sua viatura limpa, lubrificada e todos os parafusos bem apertados” Ponto 6.”Verifica o óleo, a água, o combustível, os pneus, a bateria, a busina, as luzes e os limpa vidros, antes de qualquer marcha.” Ponto 2. “Não fuma quando conduz.” Ponto 10 e outros mandamentos que tais… E não aventa com a viatura ribanceira a baixo para depois ficar vinte e três dias em cativeiro sem absolutamente necessidade nenhuma. De estar ali a ver passar os ratos nas barbas e um prato que é sempre o mesmo naturalmente, com comida regurgitada, sem, como já disse, absolutamente necessidade nenhuma, eles avisam logo lá no exército que as viaturas não se aventam ribanceira a baixo, só não ouve quem não quer, ou está apardalado porque eles avisam, estou capaz de jurar, não está no livrinho que eu já li o livrinho todo, letras miúdas e tudo, mas avisam com certeza, que as viaturas não se aventam riban… já matar o inimigo é coisa de valente. Valentão. É coisa de valente. De valentão. De valentaço. Ninguém vai vinte e três dias preso por matar um inimigo. Ou dois. Ou duas dúzias deles.
Estúpida Pátria…
E foi digno de registo. “Registo criminal disciplinar: Crime ou infracção: Segundo artigo 188 por no dia 28 de Fevereiro do corrente ano aproximadamente às 18 horas ao fazer uma curva com a viatura militar que conduzia em serviço na estrada Abrantes - Entroncamento, perto da Ponte da Pedra, não ter usado das cautelas devidas e necessárias, prococando um acidente de que resultaram danos na viatura e carga que conduzia, avaliada em 4 mil 699 Escudos, que não pagou, infringiu o dever N.º 5 do art. 4º do R. D. M. Pena imposta: 23 (vinte e três) dias de prisão disciplinar. Tribunal ou autoridade: Sua Ex.ª o General Comandante da 2ª R. M. Dia: 29. Mês: Março. Ano: 1961. Pena cumprida em Torres Novas. "
Era a estúpida Pátria que regurgitava a comida que vinha dentro do prato. Os soldados apardalados que não ouviam as advertências dos valentes, (dos valentões, dos valentaços) e aventavam com as viaturas ribanceira a baixo, para mais com mercadoria e tudo, eram obrigados a comer o regurgitado da Pátria, como se fosse bem feito.

Estúpida Pátria…

Estúpida Pátria que fala sempre mais alto do que eu e não deixa o meu pai ouvir-me. Castigo era se os homens do Sr. Valente fossem todos os dias bater na porta da Pátria de madrugada, todos os dias de madrugada, dias domingo e tudo, até ela ensurdecer. A Pátria. Castigo era haver soldados muninos de caldeiros e de gravetos e mandados para o campo (de batalha) bater com os gravetos nos caldeiros para espantar a Pátria até ela desistir.
A Pátria, isto é o que eu acho, é um sargento. Não sei se é. Digo que deve ser um sargento, mas não sei. Para falar assim tão alto… a pontos do meu pai não me ouvir...
Que é estúpida, é. Se não fosse estúpida não se calava só aos dias quatro de Novembro e assim que o meu pai põe os pés na terra (eu própria vou buscar o meu pai).

“O GENERAL COMANDANTE DA R.M.A. Despede-se do soldado João Domingos dos Santos Viana, Dest. Manutenção de Material 202 atestando-lhe o seu apreço pelo brio e valentia com que se bateu pela Pátria em terras de Angola.”

Isto devia ter uma errata assim: Onde se diz "soldado", devia ler-se apardalado. Onde se lê “…com que se bateu pela Pátria…” Devia ler-se Com que se bateu pelos ratos. O material 202 a que se refere o general comandante, esse é que foi todo ribanceira a baixo, camioneta e tudo, foi tudo por ali a baixo. Pena que só tenha sido perdoado o acto, nestas breves linhas.

Esta história podia chamar-se bloco de notas 50/59. E só o meu pai saberia dizer porquê. Chama-se “Um pardal reticências que silêncio”. Ficava melhor bloco de notas cinquenta barra cinquenta e nove, pois ficava, mesmo que ninguém lá chegasse. Mas é que eu achei um pardal reticências que silêncio, um nome muito mais digno. E foi mesmo só por isso.

Da tua filha

(se não estiveres a ouvir-me pai, eu espero, leva o tempo que precisares. Eu espero. Se acaso achar que é urgente, vou-te buscar. Não sei se alguma vez reparas-te em mim pai, mas fui-te buscar, todos os dias 4 de Novembro.)

4 comentários:

Gema disse...

É incrivel este texto (revisitado) mesmo sem o perceber na totalidade, me emociona.

Becas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Becas disse...

Adorei (re) visitar este texto, (re) ler.

Carmina Burana disse...

Tudo. Despacha-te.