”Foi nesse dia que percebi
Nada mais por nós havia a fazer
A minha paixão por ti era um lume
Esse dia foi hoje. O que já só eram brasas, agora é um quarto escuro, foi num quarto escuro onde tudo começou e acabou, mas já sem ninguém.
Tenho o coração cheio, os meus pais ocupavam quase todo o espaço, chegou o meu filho e apertadinho, cabemos todos dentro dele, as memórias empurram-se para o lado, outras por força das circunstâncias vazei-as fora. As brasas apagaram-se, o coração sangra um nadinha porque rebentou de cheio, entretanto.
Fui ver uma casa que podia bem ser a casa dos meus sonhos. Podia ter sido uma canção e não ter sido uma casa. Podia ter sido a nossa viagem de férias e não ter sido uma casa, podia ter sido um quadro, uns sapatos… Mas enfim era uma casa. Uma casa que não tinha janelas, tinha portas e varandas. Uma casa grande daquelas que giram em torno do sol. Lá do último andar avistavam-se outras casas e outras varandas todas arrumadinhas e limpas e árvores, muitas árvores salpicadas num prado verde.
A casa tinha todas as comodidades. Mas eu muito embora aprecie todas as comodidades, não é por aí. Eu não sonho obviamente com estores eléctricos, quem me conhece bem sabe que gosto de abrir os braços com as janelas e empurrá-las para a luz do dia, e à noitinha, gosto de fechar os braços com as janelas.
Eu não sonho com uma garagem, o meu carro dorme sossegado lá fora ao luar como cão no quintal, era engraçado abrir o portão em dias de chuva para os amigos entrarem na minha garagem, sobretudo os que têm filhos, mas não, não sonhei com a garagem para quatro. Pus-me a sonhar que abria as portas e as varandas daquela casa, que ela começava o seu percurso de translação e as crianças brincavam alegremente, o que não quer dizer que estivessem todas aos gritos.
Sonhei com o chão de madeira que torna acolhedora todas as casas.
Sonhei que estava sossegada à varanda a fumar o meu cigarro e que as pessoas vazavam o lixo nos contentores apropriados. Sonhei que à noitinha dava uma volta pelas lojas e pelos cafés, de mão dada com o meu filho, ambos de cabeça levantada porque o chão está limpo, ambos sem medo porque as ruas estão iluminadas.
O Centro Comercial ser mesmo ali ao lado também não é factor relevante, pois fiquei sem saber a que posto médico recorreria, a que repartição de finanças pertenceria, a que hospital… isso sim é relevante. Mas é uma coisa simpática. O F.N., os restaurantes, as lojas para comprar presentes… Sou urbana. Estilo citadina com pinceladas de romântica aqui e ali…
Podia ter sido um quadro e não tinha ninguém a quem o mostrar. Podia ter sido uma viagem de férias e não tinha com quem ir. Em vez de uma casa podia ter sido uma canção…
“Mas tu não ficaste nem meia-hora
O meu coração continua cheio. Os meus pais cabem mais à vontade, talvez sobre mais espaço para eles e para aquilo que é verdadeiramente importante, o meu filho brinca pelo meu coração inteiro a correr alegremente. As brasas vou vazá-las como às memórias que já só ocupavam espaço.
Era uma casa. Não era Saturno. Era uma viagem de percurso curto não íamos passar a fronteira nem precisava-mos ir de avião, era logo ali… Mais à frente dos olhos, um bocadinho… Era um sonho como outro qualquer e no fim, nem por agrado, nem por eu ser mãe, nem por eu trabalhar tanto, nem pela lealdade (que às vezes custa mais a cumprir que a interromper, ninguém aqui é de ferro), nem pelo prazer de partilhar os sonhos bonitos. “Sim também quero ir lá ver, também estou curioso para saber afinal, como é a casa dos teus sonhos!” Em vez de “Se ganhares o euromilhões, pode ser que eu vá lá ver a tal da casa.”
(esta desilusão de resposta merecia um saquinho daqueles que há nos aviões para a gente vomitar quando se vê em aflição. É que estamos à espera de certas palavras e depois dizem-nos outras que, meu Deus, ninguém conhece ninguém essa é a pura da verdade.)
“Tu eras aquela que eu mais queria
Quando as brasas se apagam faz um nadinha de frio. Mas vou para cama agora. Sossegada, aliviada, já não preciso de andar a ver carros sem me apetecer só para ser agradável, nem ter que gramar almoços de família e tardes a ver a TVI sem me apetecer mesmo nada, só para não fazer desfeita a quem tanto gosta de mim. Vou sonhar se Deus quizer, assim, aliviada, por já não ter que sentir nada. Não é amor, não é respeito, não é lealdade, já não é nada. Posso dizer até que enfim! Finalmente não
Tu eras aquela que eu mais queria
Ai o que eu passei
Mesmo sabendo que não gostavas
Era só a ti que eu mais queria
Mas tu não ficaste
Mesmo sabendo que não gostavas
Foi nesse dia que percebi
Carlos Tê: letra
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