oreinabarriga

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6.3.05

Um bocado de arame farpado

O autocarro apresentava-se apinhado, atrasado e descomposto.
Enfiei o jornal dobrado debaixo do braço e entrei lá para dentro. As mulheres que na paragem do autocarro estavam gordas, estavam grávidas e os miúdos que ainda há instantes estavam aos pontapés à papeleira, deficientes. Os velhinhos esses, foram todos de pé até chegar à Damaia.
Finalmente sentado, desdobrei o jornal, abri-o ao meio, dei uma vista de olhos, mas foi por cima do ombro e para os lados... ía toda a gente a ler o jornal da bola. Discretamente, voltei a fechar o jornal e a guardá-lo debaixo do braço cheio de vergonha. Estar para ali a ler que o presidente dos Estados Unidos prepara um cerco a Sadam Hussein e que por cá somos o país da europa com maior número de tuberculosos. Que na Hungria e na Checoslováquia está para lá tudo inundado por causa das cheias, é preciso ter descaramento, um homem da minha idade...
Pus-me então a observar os passageiros, o que também não é bonito mas sempre ía distraído.
Reparei que os rapazes e as raparigas de agora andam todos de aparelho nos dentes. E até os há, com mais idade com o tal aparelho nos dentes, tipo um arame farpado.
Eu, quando era pequeno dormia com uns aparelhos nas pernas porque a minha mãe, que Deus tem, encontrou-me as pernas tortas e levou-me ao consultório do Doutor Hermengardo, que logo disse à minha mãe, que Deus tem, que eu tinha que usar aparelho.
Oh meus amigos, o que eu chorei! Baba e ranho desde que entrei no comboio em Santa Apolónia até chegar à terra e durante oito dias, para agora esta mocidade andar aí toda sorridente a mostrar o aparelho como se não fosse nada com eles.
Debrucei-me sobre a Senhora que ía sentada ao meu lado por forma a descobrir se não usava também um aparelho nas pernas, igual aquele que eu usei antigamente, só que a senhora não estava nos seus dias e deu-me com o guarda-chuva na cabeça para cima de umas dez vezes. Ora se um rapaz da idade da tropa não lhes assobiar um elogio ficam para cima de ofendidas, mas se for um velhote como eu para aqui cheio de bicos de papagaio simplesmente a querer constatar um facto absolutamente sem maldade nenhuma, sujeita-se a levar um enxerto de guarda-chuva!
Nas urgências da caixa de previdência, deixaram-me a ganhar bolor com um bilhetinho na mão que dizia que eu era o 130. E fui 130 durante uma quantidade de tempo.
Entretanto a juventude toda lá ía entrando para dentro dos consultórios para levar as vacinas e para ajustar os tais aparelhos naturalmente.
Chegada a minha vez, vez 130, tarde da noite, fui finalmente atendido por um médico. Estrangeiro.
Só sei dizer que me cansei de contar o episódio do autocarro e apontava para o alto da minha cabeça, mas saí do posto médico com um aparelho nos dentes, que com franqueza, me parecia mais, um bocado de arame farpado.

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