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11.6.09

A Música

Ontem foram armas, hoje são notas de
música. Vamos avançando, portanto. A ideia, segundo julgo haver entendido, foi
da Fundação Calouste Gulbenkian e a ela se juntaram a Câmara Municipal da
Amadora e o Conservatório Nacional. Tratava-se de reunir crianças residentes em
bairros degradados e ensinar-lhes música e a tocar um instrumento. O propósito
não era original, basta lembrar a recente revelação da orquestra juvenil de
Venezuela, agora conhecida em todo o mundo, mas o erro de partida teria sido
seguir ou imitar uma ideia má, nociva, de alguma maneira prejudicial, e esta
valeria o seu peso em ouro se uma ideia tão rica de conteúdo pudesse ser pesada.
Acabo de assistir à passagem de um vídeo em que se me apresentaram umas quantas
crianças, de cor na sua maior parte, às voltas com instrumentos em que nem em
sonho haviam posto alguma vez as mãos, manejando arcos e pistões com uma
facilidade para mim assombrosa, pois foi inevitável recordar o tempo, não muito,
em que frequentei a Academia de Amadores de Música, onde não fiz mais que
balbuciar uns vagos solfejos e tropeçar com os dedos no teclado de um piano. (O
meu futuro não estava ali.) E mesmo que o futuro de todas aquelas crianças não
venha a ser a música, tenho a certeza de que nunca irão esquecer as horas
passadas na sala de ensaios e menos ainda, creio, os caminhos para chegar lá,
carregando elas próprias as caixas dos seus instrumentos, pequenas como para uma
flauta, manejáveis se continham um violino, menos cómodas se de um violoncelo se
tratava. A gravidade daqueles rostos, mesmo quando a boca se lhes descerrou em
sorrisos, a luz daqueles olhares, a ponderação com que respondiam às perguntas,
confirmaram uma velha ideia minha, a de que a felicidade é uma coisa muito
séria. Compenetrados, atentíssimos, ensaiavam uns quantos compassos da Nona de
Beethoven. Creio que os que lêem estas páginas estarão de acordo comigo se eu
disser que é um bom princípio de vida.


in O Carderno de Saramago

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